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Diretor da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo
(Ciclocidade), uma das entidades mais ativas na defesa do uso de bicicletas na
capital paulista, Daniel Guth defendeu o desestímulo ao uso de veículos na
cidade e o incremento a outros modais de transporte como a bicicleta e o
transporte coletivo.
Para ele, a instalação de vias exclusivas de ônibus na
cidade, assim como para as bicicletas, a retirada de vagas de estacionamento
para carros e o fechamento de rua aos veículos motorizados tem gerado nos
motoristas o sentimento de perda de espaço e a falsa sensação da perda de
direitos.
“As pessoas estão confundindo o direito de ir e vir com o
direito de dirigir. Não pode haver essa confusão. Quando não é permitido a você
circular de carro, não está se cerceando o seu direito de ir e vir, você pode
muito bem se deslocar, a pé, de bicicleta, de transporte público, uma série de
outros modos de transporte. As pessoas confundem, muitas vezes, o direito
constitucional de ir e vir com o direito de dirigir”, disse Guth, em entrevista
à Agência Brasil, para marcar o Dia Nacional sem Carro,
comemorado hoje (22).
A seguir, a íntegra da entrevista:
Agência Brasil: os modais bicicleta e carro não têm como se
complementar sem que haja um enfrentamento entre as partes, como hoje vemos em
São Paulo?
Daniel Guth: não é que existe um enfrentamento deliberado,
do ponto de vista do discurso. Quando você tira uma faixa de estacionamento na
rua e coloca uma ciclovia, os motoristas têm visto isso como enfrentamento. Mas
isso não é enfrentamento, isso é só uma política de inclusão.
Quem se desloca de automóvel na cidade de São Paulo
representa pouco menos de um terço da população, e esse um terço ocupa 80% da
via pública. A via pública é para todos, não é só para o automóvel. Um único
meio de transporte está ocupando 80% do espaço que é para todo mundo. Isso é
chocante, isso é falta de equidade.
Quando você tira um pouco desse espaço para dar a outros
modais, que têm tantos direitos ou mais, como diz a legislação, então as
pessoas veem isso como enfrentamento. Mas isso tem a ver muito mais com um
século de narrativa da indústria automobilística, da publicidade, do que
efetivamente um enfrentamento na prática, como você citou.
Tem muito mais a ver com a sensação de perda de direitos
que, na verdade, não são direitos, são privilégios. Estacionar na rua nunca foi
um direito, sempre foi um privilégio, e um privilégio que a gente tem que
aprender a abrir mão. Estacionar na via pública é uma privatização tosca do
espaço público. Quando se retira estacionamentos, as pessoas sentem que
perderam direito.
Há uma confusão entre direito de ir e vir e direito de
dirigir. Não pode haver essa confusão. Quando não é permitido a você circular
de carro, não está se cerceando o seu direito de ir e vir, você pode muito bem
se deslocar, a pé, de bicicleta, de transporte público, uma série de outros
modos de transporte. As pessoas confundem muitas vezes o direito constitucional
de ir e vir com o direito de dirigir.
No caso do fechamento de ruas para carros, como ocorre na
Avenida Paulista, o debate, em vez de ser feito no sentido de entender que esse
espaço tem de ser devolvido às pessoas, que podem usufruir a avenida de outra
maneira, as pessoas elas encaram isso como um enfrentamento, como se tivessem
perdendo direitos. Isso tem a ver muito mais com uma análise subjetiva, social,
cultural, do que com enfrentamento direto, um embate, uma acareação de ideias,
de argumentos.
Agência Brasil: há muita resistência dos motoristas?
Guth: não há nenhuma medida de desestímulo ao uso do carro
que não seja acompanhada de uma resistência dos motoristas. E não é falta de
diálogo, não é falta de argumentos, não é falta de campanhas, é simplesmente o
fato de que essas pessoas estão sentindo a perda de privilégios.
Todas as cidades do mundo que entenderam que o modelo
“rodoviarista” tem um limite - há um ponto em que a cidade não anda mais porque
não há sistema que comporte a quantidade de automóveis - passaram a criar
medidas e políticas públicas que, de certa forma, criaram resistências porque
tiveram que tirar espaço desse único modal que reinou nas cidades.
Nova York, Londres e Paris passaram por isso, Bogotá passou
por isso, Buenos Aires tem passado por isso, a Cidade do México tem passado por
isso, e não estou só falando de cidades europeias, estou falando de cidades
vizinhas nossas. São Paulo tem de enfrentar isso com serenidade, com
argumentação, porque não é uma questão de bicicleta contra o carro, transporte
público contra o carro, não.
É uma questão de dar maior equidade àqueles que merecem ser
incluídos, aqueles que sempre estiveram marginalizados, e isso significa
obviamente tirar espaço do carro. Isso não é um enfrentamento, isso é um
processo natural, que tem que acontecer.
Agência Brasil: em que medida o uso da bicicleta pode dar mais acesso à
cidade e à cidadania?
Guth: a bicicleta é um veículo porta a porta. Você consegue
sair da sua origem e chegar a seu destino com esse único meio de transporte.
Isso dá autonomia, garante direito ao deslocamento. É um veículo econômico, não
apenas porque é mais barato comprar uma bicicleta, mas também porque a
manutenção é mínima, é com a sua própria energia que você vai se deslocar.
Ela não requer nenhuma outra mediação de combustível, a não
ser a sua própria energia, o que também garante maior direito à cidade, uma vez
que ela pode ser acessível a todos, todos que tenham condições físicas de
utilizá-la. Outro elemento importante é a velocidade, a bicicleta traz um
elemento importante para a relação com a cidade que é velocidade mais baixa.
Faz com que a pessoa tenha uma relação de maior troca, de
maior diversidade de trocas com a cidade, seja com o comércio de rua, seja com
as pessoas. Ao pedalar a uma média de 10 a 15 quilômetros por hora, você está
muito mais afeito a consumir em uma loja, a parar para cumprimentar alguém, a
conversar com as pessoas, a interagir com a cidade de outra maneira, coisa que
com outros meios de transporte, no caso o carro, ônibus ou o metrô e trem, você
não consegue fazer.
Há vários outros elementos, como promover a saúde, seja para
a cidade seja para si mesmo, a sensação de pertencimento e de senso crítico da
cidade, Todo mundo que passa a se deslocar de bicicleta naturalmente acaba
tendo uma visão mais crítica sobre o meio urbano. Passa a sentir as agruras da
cidade de uma maneira mais intensa, seja a violência do trânsito, sejam os
cheiros, a falta de infraestrutura, a qualidade do asfalto, a feiura e a beleza
da arquitetura. Ou seja, em cima de uma bicicleta você consegue perceber a
sutileza dos elementos urbanísticos de maneira muito mais intensa, o que aguça
o senso crítico.
Agência
Brasil: hoje se comemora o Dia Mundial Sem Carro. Como você avalia as
alternativas a esse meio de transporte em São Paulo?
Guth: é um dia de concentração de esforços para mostrar que
outra cidade, do ponto de vista da mobilidade, é possível. São Paulo chegou a
um esgotamento do modelo “carrocêntrico”, de só nortear as políticas de
mobilidade em uma visão exclusivista nesse modelo “rodoviárista”. Um novo
paradigma para a mobilidade urbana é necessário, e ele está em curso.
Nós temos o amparo bastante forte de legislações, sejam elas
federais, estaduais ou municipais, que colocam a devida prioridade para a
mobilidade urbana a partir do transporte coletivo, e depois dos modos ativos de
transporte, que são majoritariamente a bicicleta e o pedestre.
Tendo esses marcos legais importantes, a gente entende que a
cidade de São Paulo tem feito isso, talvez com um pouco mais de intensidade, e
por isso tem gerado mais debates. [A cidade] tem passado a inverter a lógica
que sempre foi vigente. E, necessariamente para isso, é preciso desestimular o
uso do carro.
São Paulo tem tomado diversas medidas para desestimular o
uso do carro, de maneira piloto. Mudanças que precisam ser feitas, como por
exemplo a remoção de faixas de estacionamento nas ruas, a criação de mais
infraestrutura cicloviária, a criação de corredores e faixas exclusivas de
ônibus, a ampliação de calçadas, a retirada de vagas de estacionamento para
ampliar as calçadas, para que quem queira caminhar a pé possa fazer isso com
conforto e segurança.
O que o Poder Público faz ao dar prioridade ao transporte
coletivo, aos modos ativos de transporte, não é nada mais do que seguir o que a
legislação já manda. Então, não há nenhuma grande iluminação de um gestor, político
ou prefeito. O que há é o cumprimento do que está na legislação. Que precisa
ser intensificado.
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